2018-12-20

Incapacidade indiscutível

A comunicação entre humanos nunca foi simples. E nem estou a considerar as dificuldades impostas pela ausência de tecnologia capaz de desafiar o tempo e o espaço. Curiosamente a sensação que tenho é que, apesar dos meios de comunicação se terem tornado mais omnipresentes e acessíveis, a comunicação não se simplificou. Cada vez é mais difícil transmitir a mensagem. Cada vez mais os interlocutores estão indisponíveis para receber a mensagem alheia. Quanto mais pensar sobre ela. E ainda menos assimilá-la. Em especial se a mensagem aparentar ser contra as respectivas ideias. Os interlocutores esforçam-se por salientar as divergências em vez de aproveitar as convergências para um diálogo significativo. Este duelo de egos, leva à tentativa de vitória a todo o custo, não olhando a meios. Leva ao arremesso de argumentos que nem deviam ser chamados ao palco, quanto mais transformarem-se em actores principais. Leva ao eclipse da verdade, em vez de lançar luz sobre a mesma. Há uma irritação associada ao pensamento diferente. Uma irritação que se cola ao emissor da mensagem e não à mensagem propriamente dita. Às próximas transmissões, a memória busca as sensações desagradáveis e amplifica-as. Pouco parece importar se a mensagem é mais ou menos agradável. O asco surge muito mais rapidamente do que os lampejos do pensamento racional. O animal racional parece cada vez mais toldado por impulsos primários e pouco racionais. E isso transmite-se à sociedade onde cada indivíduo contribui para a tendência geral. E a tendência geral é de desprezo pelo outro e de tentativa de apagar a respectiva mensagem. Houvesse um botão para «desamigar» ou «des-seguir» o outro no mundo real... E não me venham dizer que estou errado...

2018-08-23

Com sentimento e sem leitura

Se o demónio existisse, certamente já teria arranjado maneira de sacar umas almas, com o consentimento do respectivo proprietário, utilizando aqueles acordos de licença de utilização pelo utilizador final, ou EULA em inglês. Aqueles termos e condições que ninguém lê até ao fim, mas consente certamente. Ou não quereria utilizar aquela aplicação informática. Este consentimento sem leitura não é novo. É apenas mais desmaterializado. Não nos obriga a guardar um molho de folhas, ou até mesmo um livro, de um qualquer contrato que assinámos sem ler, mas que esperamos que corra a nosso contento. Ou não fosse a outra parte uma pessoa/entidade de bem. Ora disfarces que não faltariam ao demónio seriam de pessoas de bem. Ou não precisasse ele de passar despercebido. Desde que não fossem de tanto bem que fizessem desconfiar... Escrevo eu, partindo do princípio que ele nem existe, nem usufrui já dalgum daqueles termos e condições para nos sacar a alma, depois da morte. No entanto, há muito que entregamos de boa vontade a nossa alma, a poderes obscuros, ainda em vida...

2018-02-26

Um murro no estômago

Não parece tão romântico como o coração, mas é o estômago o órgão mais ligado aos sentimentos. Logo, o mais sensível. Indo além da paixão e do próprio amor (quem nunca sentiu borboletas no estômago?), sente o medo e o nojo em cada aperto e náusea. Eleva a insegurança e a preocupação a uma forte sensação física. Consegue transformar dores psíquicas em mal-estar físico. Não são apenas as borboletas que nele batem, quando lhes dão a oportunidade. Também sentimos socos que nos suspendem a respiração. Que nos surpreendem pelo impacto. Sem dúvida que pensamos com o cérebro e, no entanto, o estômago é capaz de dominá-lo e enchê-lo de dores. Às quais o cérebro poderá retribuir provocando-lhe náuseas. Ou enchendo-o até o dilatar. Ou, até mesmo, obrigando-o a digerir-se a si próprio, no meio de tanto remoer. E tanta ruminação provoca azia. É com acidez que lida com os sentimentos, talvez tentando limitar tamanha sensibilidade. Seguimos os sentimentos das entranhas como sendo os mais honestos e mais extraordinários e deixamos para a razão a banal gestão do dia-a-dia.